Por Antonino Camelier
CAPÍTULO PRIMEIRO
Sou o mais velho de dez irmãos e, neste episódio, vou destacar o Alberto, o filho número cinco na ordem fraterna, quando morávamos no Planalto Paulista, bairro próximo a Moema, em São Paulo...
Alberto Camelier é um homem bem-sucedido, metódico, íntegro, prudente, Advogado e Administrador, Mestre e Doutor em Direito, autor de vários livros sobre Propriedade Intelectual e que atribui boa parte das suas conquistas às lições de vida que o Xadrez lhe proporcionou.
Mas vamos à história!
Em janeiro de 1968, um amigo de infância, o José Alves, apelidado Zofo, adentrou nossa residência para nos mostrar o que ele havia ganho no Natal: um tabuleiro, uma caixa com as peças do jogo e o livro “Xadrez Básico”, de autoria de Orfeu D’Agostini.
Nenhum de nós sabia jogar Xadrez, nem eu, com 17 anos, nem Alberto e José Alves, ambos com 11 anos de idade. Mas começamos a aprender naquele dia mesmo, folheando o livro, montando as peças e ensaiando os primeiros movimentos. O fato é que Alberto e Zofo elegeram o Xadrez como principal passatempo, e, em decorrência, foram evoluindo gradativamente nas técnicas do jogo.
Mas o salto no aprimoramento surgiu como que por acaso. Os dois tiveram a ideia de conhecer, em 1970, o famoso Clube de Xadrez São Paulo, o primeiro e mais importante do país. O ingresso nos salões de jogos era franqueado apenas aos sócios, mas o porteiro, acreditando que os garotos eram filhos de associados, deixava-os entrar.
Assim, Alberto e Zofo passaram a frequentar o CXSP praticamente todo sábado e domingo, em horário integral, e o porteiro continuava sem exigir que mostrassem a carteira de sócio, mormente depois de ter ganho, dos meninos, no dia do seu aniversário, uma caixa de lenços “Presidente”.
Jogando com oponentes de várias idades e experiência superior, Alberto e Zofo foram desenvolvendo os fundamentos do jogo, até que um dia, mais de um ano depois, um Conselheiro do Clube pediu os nomes dos dois para inscrevê-los no Torneio Juvenil, pois considerava-os extremamente promissores: foi a senha para que sumissem do CXSP...
CAPÍTULO SEGUNDO
Alberto foi o primeiro de todos os irmãos a tirar a Carteira de Trabalho e, aos 15 anos de idade, foi o primeiro da família a procurar um emprego, não por necessidade, pois o nosso pai, apesar da numerosa prole, conseguia sustentar a todos. Mas o Alberto almejava alguma independência financeira e, com certeza, esse espírito de iniciativa nasceu das lides enxadrísticas desde a infância.
Em 1972, tendo finalizado o Ginásio e cursando a 1ª Série do Colegial à noite, ficou interessado com um anúncio que nossa mãe encontrara num “Estadão” de domingo:
Siderúrgica Barra Mansa S.A., empresa do grupo Votorantim, abre seleção para o cargo de “Office-Boy”. Requisitos: saber ler e escrever, primário completo. Não é necessária experiência anterior. Apresentar-se para seleção no dia 20 de abril às 8:00h na Praça Ramos de Azevedo, 254 - 4º andar.
A função de office-boy era justamente a que buscava, pois, na época, era o cargo inicial para qualquer novato.
Na data estipulada dezenas de rapazes se apresentaram para concorrer ao emprego. Após as provas de Português, Matemática e redação, todas eliminatórias, seguiu-se uma entrevista com os cinco aprovados. Porém havia uma única vaga e o Alberto foi o selecionado.
No primeiro dia de trabalho Alberto foi recepcionado pelo boy anterior, que havia sido promovido a Auxiliar de Escritório. Ele, além de mostrar as instalações do prédio-sede do Grupo Votorantim, que, então, contava com 27 empresas, incluindo a Siderúrgica Barra Mansa, explicou os diversos afazeres a cumprir, ressaltando, todavia, uma tarefa que nenhum office-boy gostava de executar: servir café, em dois períodos, para cerca de oitenta pessoas.
O setor em que Alberto iria trabalhar chamava-se “Expedição” e contava com cinco pessoas: o chefe do setor e quatro boys, cujas idades variavam entre 15 e 17 anos.
O “chefe dos boys” chamava-se Oduvaldo. Era um sujeito “quarentão”, descendente de portugueses, de semblante fechado, estatura mediana, voz grave e que tinha apenas o primário completo. À frente do Setor de Expedição há vários anos, o que se dizia é que ele também havia sido boy e que fora promovido tão somente pela indicação do antigo chefe que se aposentou.
Oduvaldo era o típico chefe que se impunha pelo autoritarismo e rudeza de tratamento. Um dos seus comportamentos estranhos e desagradáveis era o de chamar todos os seus subordinados de “Chiquinho”.
Contudo, quando ele, pela primeira vez, se dirigiu ao Alberto dessa forma, recebeu uma resposta altiva:
— Perdão, mas o meu nome é Alberto!
— Para mim é “Chiquinho” e estamos conversados! – devolveu o arrogante.
Alberto não replicou, mas percebeu, na hora, que a sua singela ousadia perante aquele superior hierárquico teria um preço alto.
CAPÍTULO TERCEIRO
As atividades dos boys implicavam um verdadeiro corre-corre: levar e trazer correspondências e encomendas, ir ao Correio, plastificar documentos, tirar fotocópias, e ainda realizar uma vasta gama de pequenos serviços para a Diretoria e as diversas Gerências.
Mas tudo isso era coordenado pelo Oduvaldo, o “chefe dos boys”, que, tudo indicava, parecia sentir prazer em notar as dificuldades dos rapazes para cumprir as suas ordens. E mais: exigia submissão, não tolerando queixas, nem sequer expressões faciais de descontentamento.
E, quando algum dos meninos se insurgia, o castigo que Oduvaldo costumava aplicar era designá-lo para servir café.
Esta “punição”, no entendimento dos boys, era dolorosa por duas razões, uma física e outra moral. Física, porque extenuante: consumia manhã e tarde servindo café para dezenas de funcionários, reabastecendo constantemente o bule na copa de apoio e ainda tendo de recolher as xícaras utilizadas. Moral, porque se sentiam envergonhados e humilhados em fazer um trabalho que consideravam coisa de “mulher”, e não de ”boy”.
Para intimidar o Alberto, que se revelou independente logo de início, Oduvaldo reservou-lhe, como primeira incumbência na Siderúrgica Barra Mansa, o encargo tido como o mais ingrato: servir café!
Porém, mesmo percebendo o ultraje por trás do labor, o Alberto não se abalou. Decidiu aproveitar as oportunidades que a atribulação poderia lhe proporcionar e logo as encontrou: a possibilidade de conhecer pessoas dos diversos departamentos e da própria Diretoria, e com elas poder conversar, chamando-as pelo nome.
Para distribuir o café, Alberto empurrava um ”trolley”, ou seja, um carrinho com três prateleiras contendo uma grande quantidade de xícaras com pires de vidro âmbar, marca “Duralex”, além de um grande bule de alumínio.
As rodas do carrinho não rangiam, pois eram constantemente lubrificadas, mas não havia como impedir o barulho das xícaras batendo umas nas outras: era este o som que antecedia a chegada do café nos variados setores da empresa, sempre causando um agradável alvoroço entre os empregados. E Alberto a todos servia, com um sorriso e palavras amenas.
Uma semana passou, e Oduvaldo, constatando que servir café não tirara o Alberto do prumo, decidiu espezinhá-lo em outra missão.
As correspondências e encomendas eram recepcionadas no Setor de Expedição, cabendo ao chefe do setor fazer a triagem e coordenar, com os boys, as entregas aos respectivos destinatários.
Alberto, de pronto, notou como Oduvaldo agia, invariavelmente: ele passava um certo volume de entregas para o boy encarregado, indicando, com desnecessária rapidez, os nomes dos destinatários, omitindo os respectivos departamentos. Ele dizia: “esta é para o Perreps, aquela para o Morato, aquela outra para o Renato...” e assim por diante.
Diante de tanta informação transmitida num torvelinho, era natural o boy se perder e perguntar para onde deveria seguir determinada carta. Era o que Oduvaldo aguardava: ele explodia com adjetivos desagradáveis para cima do infeliz, que recebia, acabrunhado, uma injusta e massacrante bronca.
Alberto acompanhou um desses maltratados boys para “aprender”, pois, no dia seguinte, seria a vez dele. Quando isso ocorreu, Oduvaldo até parecia um locutor de leilão de gado, tal o atropelo das palavras para indicar os destinatários. Como Alberto recebeu todas as correspondências sem nada indagar, ele, visivelmente irritado perguntou:
— Você entendeu para onde devem ir estas cartas?
— Sim! – respondeu Alberto laconicamente.
Na verdade Alberto não fazia a menor ideia para quem entregar a maioria daquelas cartas. Sua resposta afirmativa fora tão somente uma estratégia para deixar Oduvaldo com a “bronca” presa na garganta.
Como ele já tinha pavimentado uma boa camaradagem com pessoas dos diversos departamentos, bastou perguntar que destinatários eram aqueles: com as esclarecedoras respostas obtidas, todas as cartas foram entregues sem problemas.
Oduvaldo não se conformou com a missão cumprida, e fez Alberto voltar a servir café...
CAPÍTULO QUARTO
Naquela época o horário do expediente era das 8:00h às 18:00h, com duas horas de intervalo para almoço e descanso.
Todos os empregados, com exceção da Diretoria e daqueles com os maiores salários, almoçavam no primeiro subsolo do prédio, um amplo espaço que congregava mesas e cadeiras, além dos equipamentos para esquentar as marmitas dos trabalhadores das 27 empresas do Grupo Votorantim.
Era muito comum os funcionários almoçarem rapidamente e dedicarem quase uma hora e meia para descansar, ler ou jogar dominó e cartas.
Alberto notou, logo na primeira semana de trabalho, que havia um homem de meia idade que jogava Xadrez sozinho, num canto do salão, segurando um livreto, provavelmente reproduzindo alguma partida famosa.
Corria o ano de 1972 e o Xadrez ainda era um jogo desconhecido pela maioria da população, apesar da proeza realizada, naquele período, pelo enxadrista Henrique da Costa Mecking, apelidado “Mequinho”, que alcançou o título de Grande Mestre Internacional, sendo o primeiro brasileiro a conquistar tal honraria.
Alberto perguntou, para algumas pessoas, quem era aquele solitário jogador de Xadrez. Soube, então, que ele agia dessa forma porque não tinha mais adversários: ganhou de todos e ninguém mais se arriscava a perder novamente.
Aquele homem soturno chamava-se Laszlo, era um engenheiro-consultor proveniente da Hungria, uma das repúblicas soviéticas de então. Na semana seguinte, Alberto se encheu de coragem, dele se aproximou, se apresentou e indagou:
— O Senhor se dispõe a jogar uma partida comigo?
Laszlo levantou o olhar, mediu Alberto de cima a baixo e perquiriu, com um sotaque forte e gutural:
— Tem certeza de que sabe jogar, garoto?
Alberto meneou cabeça afirmativamente, mas sentiu que precisava manter o excesso de confiança que o húngaro exalava. Sentou-se diante do tabuleiro, e, após o sorteio para definir quem iniciaria, começou a arrumar as peças negras, trocando deliberadamente a posição dos bispos com a dos cavalos.
Laszlo, com desdém, reclamou:
— Como você sabe jogar se não sabe nem arrumar direito as peças! – e corrigiu as posições rosnando algo ininteligível.
Iniciaram a partida. Aos poucos, uma pequena multidão foi cercando a mesa onde os dois enxadristas se digladiavam. Mas certamente a soberba contagiou o húngaro, pois ele cometeu um erro fatal, que o Alberto não perdoou e venceu o jogo de forma categórica.
Laszlo cumprimentou o vencedor e saiu, ao som dos burburinhos que foi se alastrando para virar notícia ecoando no prédio todo: “O ‘boy’ da Barra Mansa ganhou do Laszlo!”.
E foi assim que o Alberto ficou conhecido como “O boy da Barra Mansa”.
CAPÍTULO QUINTO
Laszlo, o húngaro campeão de Xadrez da sede da Votorantim, pouco depois da sua derrota para o ”boy da Barra Mansa” foi transferido para a filial do Grupo em Buenos Aires.
Alberto, assim, passou a ocupar o título informalmente, sendo saudado por onde passava e por todos aqueles que, por alguma razão, se dirigiam ao Setor de Expedição. Nestas ocasiões, inclusive, Oduvaldo, o "chefe dos boys", costumava ser ignorado, e tal circunstância passou a incomodá-lo profundamente.
Não demorou muito e Alberto decidiu ocupar uma hora do seu intervalo de almoço, duas vezes por semana, para fazer um curso de datilografia, algo indispensável, naqueles tempos, para quem tencionava progredir no emprego.
Nos demais dias se dedicava, no refeitório, a ensinar pormenores do jogo aos seus colegas de trabalho, ou, por vezes sozinho, fazia como o Laszlo: reproduzia partidas dos Grandes Mestres, apreciando, como quem observa obras de arte, as belezas escondidas no Xadrez.
Um mês no emprego ainda não havia se passado quando, no corredor, na faina de servir café, Alberto foi abordado pelo Doutor Virgílio, um dos auditores do Grupo Votorantim, pessoa simpática de uns trinta e poucos anos de idade, que foi logo dizendo:
— Alberto, soube que você é o “Mequinho” da Barra Mansa. Desafio você para uma partida, mas vou logo avisando: vou lhe dar uma surra!
O boy recebeu de bom grado a divertida provocação, ficou lisonjeado, mas uma dúvida ocupou a sua mente: o Doutor Virgílio gostaria de jogar no refeitório ou seria em algum outro lugar, “mais nobre”? Ao indagar a respeito, recebeu uma resposta objetiva do Auditor:
— No refeitório! Só me diga, por gentileza, o horário em que você costuma terminar de almoçar!
No dia e hora combinados, o Doutor Virgílio desceu as escadas para o refeitório e lá encontrou o Alberto já diante do tabuleiro arrumado para iniciar a partida de Xadrez.
Sorteado com as peças brancas, o Auditor começou o jogo revelando claramente uma linha de ataque bem agressiva. Alberto pautou-se pelos lances conservadores e, enquanto aguardava cada movimento do oponente, notou que mais e mais funcionários se aglomeravam tentando assistir à peleja.
Aquelas pessoas, na sua maioria, sequer entendiam o jogo, mas, por curiosidade e pelo ineditismo de ver um Auditor duelar com um boy, acompanhavam com vivo interesse.
A partida seguia seu ritmo, com o Auditor fustigando e Alberto preparando uma armadilha de contra-ataque. Em dado momento, o boy anunciou xeque-mate em dois lances. O Doutor Virgílio examinou a posição, balançou a cabeça afirmativamente, derrubou o seu Rei e levantou-se erguendo a mão do vencedor, gesto que fez com que todos aplaudissem freneticamente.
Em meio ao alarido, todavia, Alberto não percebeu que o “chefe dos boys” observava tudo à distância, em silêncio, mas visivelmente contrariado.
Mas o que importa assinalar é que, desde a sua derrota, o Doutor Virgílio, revelando gentileza e sensibilidade, contribuiu para aumentar o prestígio do Alberto, mormente nos escalões superiores da Votorantim, dizendo que o ”boy da Barra Mansa” era um verdadeiro ”Mequinho” e que dificilmente seria derrotado.
Já em sentido contrário, Oduvaldo, mordido pelos ciúmes, resolveu aumentar a carga punitiva sobre o Alberto, cumulando a tarefa de servir café com a entrega das encomendas mais pesadas nos locais mais distantes...
CAPÍTULO SEXTO
Os boys não serviam café para os Diretores. Nesse caso, as Secretárias transpunham o café para bules elegantes e, adentrando as salas dos respectivos Executivos, elas próprias serviam o café em xícaras de porcelana.
O ”boy da Barra Mansa” ainda não havia completado dois meses de firma, quando, certo dia, ao repassar o café para a Dona Helga, uma jovem de descendência alemã, alta, de belos olhos azuis, secretária bilíngue do Diretor da Auditoria, ela disse:
— Alberto, aguarde que o Doutor Floripes quer falar com você!
O boy, ao ouvir aquilo, sentiu um frio lhe percorrer a espinha e, na sequência, percebeu que estava tremendo. Então, enquanto esperava, procurou se acalmar respirando profundamente, como aprendeu, no Clube de Xadrez, nos momentos de ansiedade antes de enfrentar adversários sabidamente mais fortes.
Alberto já tinha ouvido, nos corredores da empresa, menções temerosas ao time da Auditoria. E ficou se perguntando a razão daquilo.
É um fato que as pessoas têm medo da auditoria, por vezes sem uma razão palpável. Mas, realmente, os auditores costumam ser vistos com receio, e uma certa rejeição, porque a missão deles consiste em informar, aos superiores do auditado, as falhas encontradas. Ora, ninguém gosta de ser fiscalizado, e pior, de ter seus erros expostos aos seus superiores.
É fato, também, que “medo” e “poder” andam lado a lado; se as pessoas sentem medo de alguém é porque esse alguém exerce um certo poder sobre elas. Com efeito, muitos auditores, lamentavelmente, gostam de criar o terror para que seu poder seja exercido. Mas o bom profissional consegue se mostrar simpático e compreensivo, obtendo até melhores resultados no seu mister.
Subitamente Alberto teve seus pensamentos interrompidos pela voz de Helga, que o convidava a entrar na sala do temido Diretor da Auditoria.
O Doutor Floripes era um senhor aparentando uns 65 anos. O boy esperava encontrar um rosto carrancudo e um dedo acusador, mas, ao contrário, foi recebido com um sorriso afável e uma pergunta surpreendente:
— Alberto, soube pelo Virgílio que você é muito bom no Xadrez. Eu estudo e gosto muito deste jogo! E fiquei curioso em te conhecer. Poderíamos disputar uma partida?
O boy, ainda um pouco trêmulo, anuiu com a cabeça e indagou:
— Seria aqui no seu gabinete, Doutor, após o expediente?
— Não, será lá no refeitório. A que horas você termina de almoçar?
Alberto não esperava por uma resposta como aquela. De todo modo, os futuros contendores marcaram data e hora.
Mas, sabe-se lá como, a notícia se espalhou como rastilho de pólvora aceso: “o boy da Barra Mansa vai jogar com o Diretor da Auditoria”!
No dia designado, quando Alberto chegou para o trabalho, foi logo interpelado, grosseiramente, pelo sinistro “chefe dos boys”:
— Chiquinho, quem mandou você desafiar o Floripes?
— Bom dia Senhor Oduvaldo! Eu não desafiei o Doutor Floripes! Pelo contrário, foi ele quem me convidou a jogar e eu aceitei. Há algum problema nisso?
— Você vai ver, vai ver, seu moleque... – respondeu Oduvaldo, grunhindo e dando as costas.
Antes do evento, incomodado com a recente conversa com seu chefe, e também inquieto pela expectativa do jogo, Alberto nem conseguiu almoçar direito.
Dirigiu-se para o seu canto habitual e ficou surpreso ao verificar que diversos funcionários estavam centralizando, no salão, a posição de duas cadeiras e uma mesa com um vistoso tabuleiro em cima, e mais, chamavam-no para lá se sentar: era o resultado das notícias de um torneio de arte, cálculo e fantasia.
Alberto agradeceu, ainda um pouco confuso. O dia não era quente, mais ele, ansioso que estava, sentia um calor tremendo e um curioso suor frio nas mãos. Sentou-se e, para aguardar o horário, ficou relendo alguns trechos do clássico livro Xadrez Básico, de Orfeu D’Agostini. Mas percebeu que muitas pessoas estavam se posicionando em pé, próximo dele...
O refeitório abrigava simultaneamente cerca de 400 pessoas. O barulho feito pelos pratos e talheres se entrechocando e pelas pessoas conversando era alto. Porém, no horário previsto, quando o Doutor Floripes desceu as escadas de acesso ao salão, fez-se um silêncio sepulcral.
O Diretor da Auditoria rapidamente localizou a arena do jogo e foi respeitosamente cumprimentado pelo Alberto. Após o sorteio da cor das peças, mas antes de começar o embate, uma verdadeira multidão foi se aglomerando ao redor da mesa, querendo ver o inusual espetáculo.
O Doutor Floripes iniciou a partida com a chamada ”Abertura Italiana”, que, em apenas três movimentos, permite que o jogador com as peças brancas consiga instalar uma forte posição no centro do tabuleiro.
Alberto utilizou a clássica ”Defesa dos Dois Cavalos”. Isto porém ensejou o que seu adversário certamente pretendia, ou seja, disparar o terrível ”Ataque Fegatello”, em que as brancas sacrificam um cavalo para deixar o monarca adversário em situação precária, exigindo do jogador das negras respostas precisas e arte na defesa.
O nome ”Fegatello” vem do italiano ”fegato”, que quer dizer “fígado”. Esse ataque, comparativamente e por assim dizer, visaria ao ponto mais vital do inimigo — o fígado, pois, na época do Renascimento, quando mestres de Xadrez desenvolveram o mencionado “ataque”, aquele órgão era considerado o mais sensível do corpo humano.
Felizmente Alberto já sabia como refutar o agressivo ”Ataque Fegatello”, e, pacientemente, foi construindo seu contra jogo. Passaram-se muitos minutos e, ao notar que se encontrava enredado numa trama de xeque-mate, o Doutor Floripes, elegantemente, derrubou o seu Rei no tabuleiro, ergueu-se, levantou a mão do Alberto e o abraçou paternalmente.
Como que numa explosão, o silêncio foi entusiasticamente quebrado, com os numerosos expectadores batendo palmas, assobiando e entoando interjeições de louvor.
Contudo, depois desse episódio, as relações entre o ”boy da Barra Mansa” e o Oduvaldo, azedaram de vez...
EPÍLOGO
No dia seguinte à chamativa disputa com o Diretor da Auditoria, Alberto chegou mais cedo do que de costume ao trabalho, e, enquanto se dirigia para o Setor de Expedição, as palavras ditas pelo Oduvaldo, na véspera, ainda martelavam, inquietantes, os seus pensamentos: “você vai ver, seu moleque...”
Seus presságios, que já não eram animadores, se confirmaram ao adentrar o recinto: dois boys, ao verem-no, cochicharam entre si e, quando se aproximaram do Alberto para revelar algo, preferiram debandar, pois perceberam a súbita chegada do Chefe.
Oduvaldo, com os olhos brilhando de satisfação, parecia estar apenas esperando a chegada do Alberto. Avançou na direção dele, entre sarcástico e ameaçador, e disse, num esgar:
— O que eu queria mesmo era lhe dar uns tapas, seu atrevido. Mas já encaminhei sua demissão para o Departamento Pessoal. Suma-se daqui, Chiquinho insolente!
Abatido, embora esperasse tal represália, Alberto se dirigiu para a área de Recursos Humanos, que, na época, ainda não era conhecida com esta denominação.
Lá foi recebido pelos funcionários Roque, Durval e Dalva, pois o Chefe, o senhor Edson, ainda não havia chegado. Foi consolado em razão da demissão havida, porém eles anteciparam que nada poderiam fazer, pois Alberto era um empregado muito recente e que, por assim dizer, ainda se encontrava numa fase de experiência.
Foi então que Roque teve uma ideia:
— Alberto, todos nós sabemos que o motivo da sua demissão foram os ciúmes do “chefe dos boys” em razão do seu sucesso como enxadrista, principalmente depois da sua vitória contra o Diretor da Auditoria. Oduvaldo se sentiu ofuscado, pois gosta de ter os boys debaixo da asa. – e prosseguiu:
— Eu acho que você deveria ir conversar com o Doutor Floripes e dizer que está sendo demitido por causa dele!
Dalva e Durval anuíram com a sugestão e encorajaram o ”boy da Barra Mansa” a tomar aquela iniciativa. Alberto refletiu um pouco e achou que, embora estivessem carregando nas tintas, o motivo era aquele mesmo: afinal, Oduvaldo se irritara exatamente porque, sem sua permissão, ocorreu uma partida de Xadrez entre um subordinado seu e o poderoso Diretor da Auditoria.
Uma vez na antessala do gabinete do Doutor Floripes, a Secretária Helga estranhou que Alberto lá entrasse sem estar empurrando o carrinho de café, ou sobraçando alguma encomenda. O boy explicou que estava demitido e que gostaria de se despedir do Diretor da Auditoria, o responsável indireto pela sua demissão.
Helga, ao ouvir aquilo, pegou o telefone, falou rapidamente com o seu Chefe, e, após pedir para o Alberto aguardar, entrou no gabinete. Muitos minutos depois ela saiu e disse:
— Alberto! O Doutor Floripes já conversou com algumas pessoas e pediu para que você vá para a sua casa e retorne amanhã, se apresentando diretamente no Departamento de Pessoal.
O ”boy da Barra Mansa” não entendeu nada do que estava acontecendo, e, portanto, não tinha a menor ideia de quais seriam as pessoas com quem o Diretor teria conversado. Mas acreditou que uma força maior o ajudaria.
Na manhã seguinte se dirigiu à administração do Pessoal e, quando foi visto pelo Roque, recebeu um aceno para que entrasse rapidamente.
Alberto cumprimentou a todos e, sem entender a razão, foi apressadamente encaminhado ao gabinete do Chefe do Departamento, o senhor Edson, que o recebeu sorridente, lhe deu um abraço, e anunciou:
— Parabéns, Alberto, você foi promovido para Auxiliar de Escritório! Durval e Dalva estão encarregados de lhe instruir quais serão as suas novas tarefas. Boa sorte!
Consta que foi a promoção mais rápida que aconteceu nos anais do Grupo Votorantim...
Oficial R/2 de Cavalaria
Advogado
Enxadrista